terça-feira, 5 de julho de 2011

* O QUEIXO


O parto teria sido considerado normal não fosse aquela enorme protuberância que, aos poucos, foi aparecendo na parte inferior do rosto do bebê. O obstetra assustou-se e as duas enfermeiras assistentes recuaram um passo arregalando os olhos. Ao entrar de vez para este mundo o bebê anunciou com um suave vagido que, sim, era um rechonchudo menino e com um queixo enorme! Lá fora, ao perguntar ansioso se era um menino ou uma menina, o sr. Nakamura não entendera bem a resposta:
___ É um menino... mas talvez seja melhor esperar pelos repórteres!
O Queixo tentou nascer Paulo Nakamura… mas já no berçário as enfermeiras se referiam a ele como o Queixo... e Queixo ficou! Seus pais, prósperos japoneses donos de uma pequena holding que conjugava, numa só esquina, uma lavanderia, uma quitanda e uma pastelaria tiveram de levá-lo para casa envolto em dois cueiros... um pra ele e outro pro queixo. Em casa, um primeiro drama... o berço... comportava um bebê, mas não com um queixo daquele tamanho! Tiveram de colocá-lo na cama do casal e os Nakamura, pequenos, jeitosos e pacientes como a maioria dos japoneses, acomodaram-se muito bem obrigado no berço que era destinado ao Queixo. Assim, todas as noites, depois que o Queixo mamava e dormia, os Nakamura recolhiam-se ao berço porque o dia seguinte seria um novo dia de labuta. Mas antes de dormir, o sr. Nakamura sempre brincava com os pequenos móbiles pendurados no berço enquanto a sra. Nakamura brincava com o pequeno...
Bem, o Queixo foi uma criança sadia, bem-comportada e com um inegável talento para a bondade. Mesmo sendo muitas vezes discriminado por pais, mães e crianças ele nunca perdia aquela nipônica suavidade nos gestos e repartia de bom grado com os amiguinhos lanches e brinquedos. Mais tarde, não foram raras as vezes em que ele chegara tarde em casa porque ficara, sentado à beira da quadra, vendo a turma jogar bola. Ficava esperando o jogo acabar porque a bola era dele!
Bem, o Queixo foi crescendo e teria se tornado um japonês normal tipo faixa preta de judô ou primeiro lugar em matemática na USP não fosse o tamanho do seu queixo. Mas não impediu que ele fosse primeiro lugar no vestibular de Física da USP. Dessa forma aquele queixo nem sempre foi um empecilho constrangedor... como quando entrava no elevador e a turma, aos risos irônicos, gritava: “Lotado!”. Muitas vezes era também uma vantagem como quando foi extrair o dente do siso. O dentista só conseguiu tirar fora aquele dentão depois que se levantou e apoiou o joelho no queixo do Queixo.
Na verdade, embora fosse alvo de muitas chacotas, o Queixo era bastante requisitado pela turma da faculdade. Principalmente em dia de prova, quando todos brigavam pra se sentar atrás dele. Com o queixo do Queixo dando cobertura, era a maior moleza “colar”. No futebol de salão, então, feliz era o time que tivesse o Queixo na equipe. Foi, sem favor nenhum, o melhor goleiro que já passou por aquela faculdade... nunca engoliu um gol! Apenas ficava parado entre as traves e, atento ao jogo, só mexia a cabeça para esquerda ou para a direita... a bola batia e voltava para o meio da quadra. O time do Queixo ou empatava em zero a zero ou ganhava. Nunca perdia! Mas quando iam ao Salão de Bilhar dava pena do Queixo. Ele não conseguia jogar porque o queixo atrapalhava na hora de dar uma tacada... então ele ficava apenas olhando, tomando cerveja e a turma anotando os pontos no queixo dele! Na hora de pagar a conta, pagava como se houvesse jogado. Mas ele não se importava... para ele o que valia a pena mesmo era ficar na companhia dos amigos. Nem mesmo com as inevitáveis gozações ele fazia caso! Pelo contrário, ele até gostava. A gozação que ele mais curtia era quando a turma dizia que ele teria de pagar IPTU por aquele queixo. Nunca se queixava... apenas sorria feliz por estar inserido no contexto!
Mas se por um lado o Queixo, à custa de gozação, conseguia ser aceito pelos amigos por outro sequer se imaginava sendo amado por uma mulher. Nunca o telefone tocou com alguém no outro lado da linha chamando-o para um cinema, um teatro ou para nada. Nem mesmo os amigos, a não ser que precisassem de alguma coisa que só o Queixo tivesse. Como dinheiro, por exemplo. À noite, sua única companhia eram as pombas que vinham pousar na janela do seu quarto no alto da lavanderia. Ele trocava, de boa vontade, sua tristeza pelos arrulhos felizes que conseguia com farelo de pão.  Isso fazia dele, nas noites vazias, um rapaz solitário.
Mas um belo dia... e sempre há um belo dia... algo inesperado aconteceu! Ao descer as escadarias do saguão principal da faculdade, o Queixo meio que tropeçou e rolou escada abaixo, jogando para o alto todos os seus cadernos e livros. Só foi parar de rolar no último degrau. Após um miserável segundo de silêncio, o saguão explodiu em risos e zombarias. Em meio àquelas gargalhadas, algumas mãos se estenderam para ajudá-lo a se levantar. Mas o Queixo, furioso consigo mesmo por esquecer um cadarço desamarrado, repelia toda e qualquer ajuda. Os que tentaram ajudá-lo se afastaram penalizados e surpresos pois nunca haviam visto o Queixo com gestos bruscos e zangados. Outros continuavam a rir e a fazer gozações. Extremamente envergonhado, pois sempre fora muito reservado, o Queixo ajoelhou-se no chão e começou, vagarosamente, a recolher livros e cadernos. Alguém ainda apanhou um dos livros caídos e tentou entregar ao Queixo mas ele, taciturno, apenas balançou a cabeça negativamente.
Ainda podia-se ouvir algumas gargalhadas e comentários irônicos quando, de repente, o Queixo sentiu a textura de uma pétala de flor segurar-lhe suavemente a mão. De quatro que estava, levantou a cabeça e, naquele momento, o que viu pareceu-lhe que havia morrido e um anjo viera recebê-lo. Sentou-se e, com uma das mãos, procurou cobrir o queixo. Não quis que aquela anormalidade afrontasse ou ferisse aquele rosto lindo e suave a olhar para ele com olhos ora verdes, ora castanhos... sentiu novamente a mão dela a puxar delicadamente a mão dele de frente do queixo.
___ Posso ajudá-lo?
A voz soou-lhe como a uma música inexplicavel e bonita que, no pesado silêncio que agora reinava no saguão, podia-se ouvir. Meio desajeitado, ele se levantou, contrariando a expressão que diz que mulheres bonitas fazem cair o queixo. Nesse caso, levantou o Queixo que agora pôde então ver melhor a belíssima jovem que, para ajudá-lo, começou a recolher os livros e cadernos espalhados. Aos poucos, foi esquadrilhando a moça com olhar incrédulo... ela trazia botas de camurça, jeans apertados delineando um corpo de formas atraentes, blusa de lã rosa combinando com o gorro da mesma cor que cobria a cabeça. Ela entregou-lhe o último caderno caído... e novamente aquela música suave:
___ Voce tem um nome?
Aquilo parecia um sonho. A qualquer momento acordaria com alguém rindo ou fazendo alguma gozação.
___ Si-sim... Queixo... e o seu?
___ Dumbo... ___ e puxou o gorro.
Um “oh!” em uníssono percorreu todo o saguão. O Queixo estava estupefato! Nunca vira orelhas tão grandes. Mas gastou apenas um segundo para olhá-las... porque, se ela quisesse, ficaria toda uma eternidade somente olhando para aquele rosto de pêssego e para aquele olhar ora verde, ora castanho, cheio de bondade, cheio de... ela segurou-lhe a mão:
___ Vamos?
Ele assentiu e os dois saíram caminhando sob uma inédita aura de felicidade.     
Ninguém mais riu...

2 comentários:

  1. Parabéns, Aurélio sua narração é impecável.
    Pedro Bandeira, Ruth Rocha e Roniwalter Jatobá de Almeida diriam: Tem começo, meio e fim.
    Sou teu fã!
    Nivaldo Ramos Pissai

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  2. Ai que amor lindo, adorei! beijos Lilian

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