domingo, 10 de julho de 2011

* AMOR IMPOSSÍVEL


Esta é uma pequena história de um amor muito bonito, muito antigo... mas muito triste também. Antigo, porque esse amor nasceu como nascem as coisas que são eternas; e bonito... bem, porque bonito é todo sentimento de amor. Mas nesta história, o amor é muito mais do que isso... é extraordinário, extravagante e... impossível! Por isso é uma história cheia de mágoa, aflição e desespero. Todas as manhãs ele acorda pensando nela. Por isso levanta radiante, brilhante e, com tanto amor a dar, ele se torna bonito, importante, majestoso... contagiando a tudo e a todos com esse amor insuperável. Assim, cheio de esperança, ele sai em busca de sua amada. Mas após um dia inteiro de procura inútil e atormentado pela ausência dela, ele se vai... deixando para trás a escuridão de sua tristeza. Não percebe que na treva deixada pelos seus passos brilha, ainda tímida, uma luz prateada. Nesse momento ela surge... cintilante, graciosa, apaixonada... e de tanto amar ela também se faz bonita e importante. Por uma noite inteira, ela também procura intensamente por ele, inspirando amor e ternura... mas ao fim da jornada, desiludida por não encontrá-lo, ela também se vai... triste... sem perceber o crepúsculo dourado que fica para trás. Não sabe ela que é ele que vem chegando... ela vai, ele vem e assim será por toda a eternidade! Não poderão jamais se encontrar, se abraçar e fazer explodir em luzes douradas e prateadas esse amor tão bonito, tão incrível que só ele, o Sol; e só ela, a Lua; num repentino milagre cosmológico, poderiam viver... uma pena!

quarta-feira, 6 de julho de 2011

* O MILAGRE DA VIDA





             Certa vez uma semente de Pitanga, jogada pelo vento na terra, olhou para o Sol e disse:
             ___ Sol... você que brilha no Universo, dando luz e calor para todos nós, continue brilhando para que eu possa brotar, crescer e ficar um Pé de Pitanga bem bonito e vistoso.
             Depois de um certo tempo, o primeiro broto do Pé de Pitanga saiu para fora da semente e cravou na terra suas primeiras raízes cresceu e se tornou uma plantinha de folhas bem verdinhas. O tempo passou e o Pé de Pitanga cresceu e se transformou numa bela árvore. Todos os dias ele agradecia a Deus por aquele milagre.
             Um belo dia, apareceram duas Borboletas e deixaram um ovinho em uma das folhas do Pé de Pitanga. Com o passar do tempo esse ovinho foi crescendo e, um belo dia, saiu de dentro uma Taturana cheia de pêlos e patinhas. Como tinha acabado de acordar, a Taturana estava morrendo de fome. Então ela olhou para o Pé de Pitanga e disse:
             ___ Pé de Pitanga... você que, todos os dias, recebe luz e calor do Sol e cresceu até ficar bonito e vistoso, deixe-me comer de suas folhas para que eu possa me alimentar e matar a minha fome.
             Então a Taturana começou a se alimentar das folhas do Pé de Pitanga. Cada folha era uma refeição apetitosa e ela comia, comia e se deliciava com aquilo. Comeu tanto, mas tanto, que ficou gordona, roliça feito um cabo de vassoura. Era bom comer e a Taturana, todos os dias, agradecia a Deus por isso.
             Certa manhã de Sol, quando gotas de orvalho ainda acendiam pequenas luzes nas folhas do Pé de Pitanga, a Taturana parou de comer para ouvir o canto de um bonito Sabiá, que havia pousado num dos galhos. O Sabiá entoou um bonito canto, cuja melodia parecia dizer:
             ___ Taturana... você que está bonita e forte porque comeu as folhas desse Pé de Pitanga, que recebeu a luz e o calor do Sol para crescer e ficar vistoso, deixe-me comê-la para que eu possa me alimentar e a meus filhotes e assim matar nossa fome.
             Rapidamente, o Sabiá prendeu a Taturana com o bico e levantou vôo em direção de seu ninho, onde filhotes esfomeados esperavam aquele delicioso petisco. Foi um banquete daqueles! Era bom comer e o Sabiá, todos os dias, agradecia a Deus por aquele milagre.
             Algum tempo depois, o Sabiá voou para as campinas em busca de alimentos. Era um campo relvoso, onde havia muitos insetos ótimos para a alimentação de um passarinho como o Sabiá. Estava ele voando aqui e acolá, quando de repente... rastejando lisa e silenciosamente surgiu na sua frente uma enorme Cobra. Ela fixou um olhar agudo e penetrante no olhar do Sabiá que, ao mesmo tempo que o hipnotizava, parecia dizer:
             ___ Sabiá... você que tem um canto bonito, que comeu a Taturana gorda e roliça, que comeu as folhas do Pé de Pitanga, que recebeu a luz do Sol para crescer bonito e vistoso... deixe-me comê-lo para eu me alimentar e matar a minha fome.
             Rapidamente abocanhou o Sabiá e saiu rastejando de volta para o seu ninho. Aos poucos e bem devagarzinho, a Cobra engoliu o Sabiá inteirinho e sentiu-se bastante satisfeita com aquela deliciosa refeição. Era bom comer e a Cobra, todos os dias, agradecia a Deus por aquele milagre.
             Passaram-se os meses e, com a chegada das águas, a Cobra achou que nos pântanos formados pelas cheias haveria muitos sapos para garantir a sua alimentação. Rastejou macia e silenciosa pelas touceiras alagadas quando de repente, de trás de um enorme tronco... surgiu rápida e certeira a mão calosa e de dedos fortes de Acauã. O Índio levantou a Cobra presa na altura da cabeça, imobilizando-a. Acauã notou o tamanho da cobra que serpenteava e sorriu. Seu sorriso parecia dizer:
             ___ Cobra... você que tem o olhar agudo e penetrante, que comeu o Sabiá que tem um canto bonito, que comeu a Taturana gorda e roliça, que comeu as folhas do Pé de Pitanga, que recebeu a luz do Sol para crescer bonito e vistoso... deixe-me comê-la para eu me alimentar e matar a minha fome.
             Ali mesmo, Acauã, com seu punhal, decepou a cabeça da Cobra e num corte preciso estripou-a, separando com a habilidade de muitas gerações o couro e a carne. Longe dos alagadiços, o Índio preparou um braseiro de bom tamanho e, com duas forquilhas compridas postas acima das brasas, esticou o couro da Cobra para secar.
             Acauã cortou a carne em pequenos pedaços e jogou-os sobre o braseiro. Com a ponta do punhal ia remexendo os nacos, espetando e comendo aqueles que já estavam assados. Às vezes, olhava para o céu acolchoado de nuvens e uma brisa fresca vinha soprar-lhe o rosto de bronze. De cócoras ao lado do fogo, Acauã mastigava lentamente sentindo-se feliz e saciado. Era bom comer e, olhando para o céu, Acauã agradecia a Tupã por aquele milagre.
             Depois de comer, Acauã decidiu voltar para sua tribo. Enrolou o couro da Cobra e pôs-se a andar. No caminho, o Índio encontrou um Pé de Pitanga com muitos frutos maduros. Encostou na árvore e comeu até fartar-se. Decidiu seguir seu caminho.
             De repente, um vento forte empurrou-lhe os cabelos negros e duros e uma voz, que vinha de todos os lados, de todas as matas, de todos os céus, disse-lhe:
             ___ Acauã... você que comeu a Cobra, que tinha um olhar agudo e penetrante, que comeu o Sabiá, que tinha um canto bonito, que comeu a Taturana, que era gorda e roliça, que comeu as folhas do Pé de Pitanga, que recebeu a luz e o calor do Sol para crescer e ficar vistoso... plante a semente desse fruto, porque assim virão muitos Pés de Pitanga, muitas Taturanas, muitos Sabiás, muitas Cobras e muitos Índios para se alimentar e matar a fome.
             Acauã fez o que foi pedido e, mais uma vez, olhou para o céu e agradeceu por aquele milagre.


(Publicado por Seed Editorial na coleção Contando Ciências de
Aurélio de Oliveira e ilustrado por Irineu Rodrigues)

terça-feira, 5 de julho de 2011

* O QUEIXO


O parto teria sido considerado normal não fosse aquela enorme protuberância que, aos poucos, foi aparecendo na parte inferior do rosto do bebê. O obstetra assustou-se e as duas enfermeiras assistentes recuaram um passo arregalando os olhos. Ao entrar de vez para este mundo o bebê anunciou com um suave vagido que, sim, era um rechonchudo menino e com um queixo enorme! Lá fora, ao perguntar ansioso se era um menino ou uma menina, o sr. Nakamura não entendera bem a resposta:
___ É um menino... mas talvez seja melhor esperar pelos repórteres!
O Queixo tentou nascer Paulo Nakamura… mas já no berçário as enfermeiras se referiam a ele como o Queixo... e Queixo ficou! Seus pais, prósperos japoneses donos de uma pequena holding que conjugava, numa só esquina, uma lavanderia, uma quitanda e uma pastelaria tiveram de levá-lo para casa envolto em dois cueiros... um pra ele e outro pro queixo. Em casa, um primeiro drama... o berço... comportava um bebê, mas não com um queixo daquele tamanho! Tiveram de colocá-lo na cama do casal e os Nakamura, pequenos, jeitosos e pacientes como a maioria dos japoneses, acomodaram-se muito bem obrigado no berço que era destinado ao Queixo. Assim, todas as noites, depois que o Queixo mamava e dormia, os Nakamura recolhiam-se ao berço porque o dia seguinte seria um novo dia de labuta. Mas antes de dormir, o sr. Nakamura sempre brincava com os pequenos móbiles pendurados no berço enquanto a sra. Nakamura brincava com o pequeno...
Bem, o Queixo foi uma criança sadia, bem-comportada e com um inegável talento para a bondade. Mesmo sendo muitas vezes discriminado por pais, mães e crianças ele nunca perdia aquela nipônica suavidade nos gestos e repartia de bom grado com os amiguinhos lanches e brinquedos. Mais tarde, não foram raras as vezes em que ele chegara tarde em casa porque ficara, sentado à beira da quadra, vendo a turma jogar bola. Ficava esperando o jogo acabar porque a bola era dele!
Bem, o Queixo foi crescendo e teria se tornado um japonês normal tipo faixa preta de judô ou primeiro lugar em matemática na USP não fosse o tamanho do seu queixo. Mas não impediu que ele fosse primeiro lugar no vestibular de Física da USP. Dessa forma aquele queixo nem sempre foi um empecilho constrangedor... como quando entrava no elevador e a turma, aos risos irônicos, gritava: “Lotado!”. Muitas vezes era também uma vantagem como quando foi extrair o dente do siso. O dentista só conseguiu tirar fora aquele dentão depois que se levantou e apoiou o joelho no queixo do Queixo.
Na verdade, embora fosse alvo de muitas chacotas, o Queixo era bastante requisitado pela turma da faculdade. Principalmente em dia de prova, quando todos brigavam pra se sentar atrás dele. Com o queixo do Queixo dando cobertura, era a maior moleza “colar”. No futebol de salão, então, feliz era o time que tivesse o Queixo na equipe. Foi, sem favor nenhum, o melhor goleiro que já passou por aquela faculdade... nunca engoliu um gol! Apenas ficava parado entre as traves e, atento ao jogo, só mexia a cabeça para esquerda ou para a direita... a bola batia e voltava para o meio da quadra. O time do Queixo ou empatava em zero a zero ou ganhava. Nunca perdia! Mas quando iam ao Salão de Bilhar dava pena do Queixo. Ele não conseguia jogar porque o queixo atrapalhava na hora de dar uma tacada... então ele ficava apenas olhando, tomando cerveja e a turma anotando os pontos no queixo dele! Na hora de pagar a conta, pagava como se houvesse jogado. Mas ele não se importava... para ele o que valia a pena mesmo era ficar na companhia dos amigos. Nem mesmo com as inevitáveis gozações ele fazia caso! Pelo contrário, ele até gostava. A gozação que ele mais curtia era quando a turma dizia que ele teria de pagar IPTU por aquele queixo. Nunca se queixava... apenas sorria feliz por estar inserido no contexto!
Mas se por um lado o Queixo, à custa de gozação, conseguia ser aceito pelos amigos por outro sequer se imaginava sendo amado por uma mulher. Nunca o telefone tocou com alguém no outro lado da linha chamando-o para um cinema, um teatro ou para nada. Nem mesmo os amigos, a não ser que precisassem de alguma coisa que só o Queixo tivesse. Como dinheiro, por exemplo. À noite, sua única companhia eram as pombas que vinham pousar na janela do seu quarto no alto da lavanderia. Ele trocava, de boa vontade, sua tristeza pelos arrulhos felizes que conseguia com farelo de pão.  Isso fazia dele, nas noites vazias, um rapaz solitário.
Mas um belo dia... e sempre há um belo dia... algo inesperado aconteceu! Ao descer as escadarias do saguão principal da faculdade, o Queixo meio que tropeçou e rolou escada abaixo, jogando para o alto todos os seus cadernos e livros. Só foi parar de rolar no último degrau. Após um miserável segundo de silêncio, o saguão explodiu em risos e zombarias. Em meio àquelas gargalhadas, algumas mãos se estenderam para ajudá-lo a se levantar. Mas o Queixo, furioso consigo mesmo por esquecer um cadarço desamarrado, repelia toda e qualquer ajuda. Os que tentaram ajudá-lo se afastaram penalizados e surpresos pois nunca haviam visto o Queixo com gestos bruscos e zangados. Outros continuavam a rir e a fazer gozações. Extremamente envergonhado, pois sempre fora muito reservado, o Queixo ajoelhou-se no chão e começou, vagarosamente, a recolher livros e cadernos. Alguém ainda apanhou um dos livros caídos e tentou entregar ao Queixo mas ele, taciturno, apenas balançou a cabeça negativamente.
Ainda podia-se ouvir algumas gargalhadas e comentários irônicos quando, de repente, o Queixo sentiu a textura de uma pétala de flor segurar-lhe suavemente a mão. De quatro que estava, levantou a cabeça e, naquele momento, o que viu pareceu-lhe que havia morrido e um anjo viera recebê-lo. Sentou-se e, com uma das mãos, procurou cobrir o queixo. Não quis que aquela anormalidade afrontasse ou ferisse aquele rosto lindo e suave a olhar para ele com olhos ora verdes, ora castanhos... sentiu novamente a mão dela a puxar delicadamente a mão dele de frente do queixo.
___ Posso ajudá-lo?
A voz soou-lhe como a uma música inexplicavel e bonita que, no pesado silêncio que agora reinava no saguão, podia-se ouvir. Meio desajeitado, ele se levantou, contrariando a expressão que diz que mulheres bonitas fazem cair o queixo. Nesse caso, levantou o Queixo que agora pôde então ver melhor a belíssima jovem que, para ajudá-lo, começou a recolher os livros e cadernos espalhados. Aos poucos, foi esquadrilhando a moça com olhar incrédulo... ela trazia botas de camurça, jeans apertados delineando um corpo de formas atraentes, blusa de lã rosa combinando com o gorro da mesma cor que cobria a cabeça. Ela entregou-lhe o último caderno caído... e novamente aquela música suave:
___ Voce tem um nome?
Aquilo parecia um sonho. A qualquer momento acordaria com alguém rindo ou fazendo alguma gozação.
___ Si-sim... Queixo... e o seu?
___ Dumbo... ___ e puxou o gorro.
Um “oh!” em uníssono percorreu todo o saguão. O Queixo estava estupefato! Nunca vira orelhas tão grandes. Mas gastou apenas um segundo para olhá-las... porque, se ela quisesse, ficaria toda uma eternidade somente olhando para aquele rosto de pêssego e para aquele olhar ora verde, ora castanho, cheio de bondade, cheio de... ela segurou-lhe a mão:
___ Vamos?
Ele assentiu e os dois saíram caminhando sob uma inédita aura de felicidade.     
Ninguém mais riu...